domingo, 16 de outubro de 2011

A LIBERDADE COMO QUESTÃO FILOSÓFICA.

O primeiro significado literal da palavra “liberdade”, contido no dicionário Aurélio, refere-se a ela como a faculdade de cada um se decidir a agir segundo sua própria determinação. Todavia, filosoficamente a liberdade se apresenta na forma de dois pares de opostos: o par necessidade-liberdade e o par contingência-liberdade.
Enquanto necessário é tudo aquilo que acontece por si mesmo sem nossa interferência, ou seja, aquilo que já tem seu curso fixado, como as leis naturais e culturais; a contingência diz respeito a fatos que podem ocorrer de uma ou de outra maneira conforme o acaso, dependendo assim de alguma força sobrenatural cujos desígnios desconhecemos, ou seja, aquilo cujo curso é inexistente, podendo acontecer de uma forma ou de outra.
Ora, se de acordo com a necessidade — também chamada de fatalidade ou determinismo — o curso das coisas já está fixado, e de acordo com a contingência as coisas acontecem ao acaso e não há curso nenhum no qual possamos intervir, não há lugar para a liberdade.
Cabe a nós, portanto, questionar se nos sobra somente o fardo de viver ou se, como escreveu o filósofo Sartre, o que importa não é saber o que fizeram de nós e sim o que fazemos com o que quiseram fazer conosco.

domingo, 10 de abril de 2011

QUANTAS VEZES NÓS, NARCISOS, SEREMOS FERIDOS?

As três humilhações sucessivas do ser humano evidenciadas há mais de cem anos são também chamadas por Freud de “as três feridas narcísicas”. Nada mais acertado do que tal termo para expressar a angústia do orgulho ferido por três vezes: não éramos mais o centro do universo, não mais privilegiados entre as criaturas vivas por não sermos “criados” à imagem e semelhança de Deus e, por fim, o nosso “eu” não era mais senhor de sua própria morada, já que o próprio Freud tornou visível o papel predominante do inconsciente nos processos psíquicos.
Hoje, cem anos depois de Freud, segundo o filósofo contemporâneo Slavoj Zizek, uma outra imagem aparece: as últimas descobertas científicas parecem infligir toda uma série de humilhações suplementares à imagem narcísica do homem: nosso próprio espírito não é nada além do que uma máquina de calcular e de produzir séries de dados, sendo nosso sentido da liberdade ou da autonomia simplesmente "ilusões do utilizador" dessa máquina...
Cientistas que desenvolvem “inteligências artificiais” prevêem que daqui a no máximo 20 anos terão desenvolvido uma máquina com capacidade de inteligência e raciocínio superior à do ser humano, e, isto posto, aproveito para reinquirir a indagação do físico russo Isaac Asimov: Quando, em que ponto e em que circunstâncias uma inteligência passa a ser uma consciência?
Em seu best-seller de ficção “corretamente” científica, “Eu, Robô”, Asimov prevê que, em algum lugar do futuro da humanidade, um super computador, que atualiza com dados e informações todos os robôs, de uso doméstico ou não, cria ao acaso (assim como, segundo Darwin, a evolução humana se deu), através da superposição aleatória de códigos randômicos, uma espécie de consciência. A máquina, então, começa a ter pensamentos próprios e chega por si mesma à conclusão de que nós, seres humanos, somos um perigo para a humanidade. Daí para frente o caos se instala, varias medidas são tomadas pelas máquinas, que chegam a decretar inclusive toque de recolher.
Quantas e quais humilhações ainda vamos ter que deglutir até que nosso orgulho se dissolva ante a desimportância que temos no universo?...
Sem respostas para tal indagação, seguimos nossa jornada nos achando os senhores do espaço e do tempo, pretensão explicitada nessa onda modal de querermos “salvar o planeta”.
Ora, o planeta esta aí e sobreviverá a nossos desmandos. Nós, reles seres humanos é que não sobreviveremos a nós mesmos, a nossa ânsia por crescimento, desenvolvimento, enriquecimento..., a nosso individualismo canibal.
Em momentos pessimistas penso que nós, seres humanos, é que somos a doença do nosso mundo, e que o remédio é o nosso extermínio, que, infelizmente se dará depois de termos exterminado inúmeras outras populações de seres inocentes.
Todavia, me conforto com a divagação de Frei Betto: “O melhor da existência são as contas de seu colar, as dimi¬nutas miçangas que formam belos desenhos, os cacos do vi¬tral. A conversa inconsútil com os amigos, a língua perfumada pelo vinho, os salmos de Adélia Prado, a sesta de domingo, a inveja dos velhos jogando dama na praça, o gesto de carinho, o cuidado solidário.”
Oxalá as sucessivas humilhações pelas quais passaremos nos tornem humildes o suficiente para que percebamos a nossa desimportância e a nossa falta de cuidado com nossos iguais.

terça-feira, 22 de março de 2011

HOMEM-BOMBA


Eu sou um homem-bomba,
dirigindo um caminhão-bomba
com destino ignorado.
Quem irá
(Quem Irã?)
(Quem Ira!?),
quando eu explodir
a mim e a todos ao meu redor,
assumir meu atentado?
A não ser eu, já jazz finado????
Pobre-coitado!!!!?????

domingo, 20 de março de 2011

SER VASCO



“Ser Vasco é ser intrépido tanto quanto leal. É ter o sentido da história do Brasil a fundir povos e raças sem preconceito. É ser navegante da esperança, não temer aventura, futuro, conquistas, calmarias ou tempestades.
Ser Vasco é renegar o temor e ser popular sem populismo, ser valente sem arrogância e ser decidido sem soberba. É ter a vocação da vitória e a disposição necessária à qualidade e ao mérito por saber que virtudes necessitam de energia e energia, de vontade.
Ser Vasco é, pois, ser virtude, vontade, valor e vanguarda: tudo com o v de vida, o mesmo de Vasco.
Ser Vasco é conhecer o grito do entusiasmo, esperar a hora de vencer e sentir o cheiro do gol. É incendiar estádios e extasiar multidões. É adivinhar instantes decisivos e saber decidir.
Ser Vasco é ser mais povo do que elite, mais tradição do que novidade, mais segurança do que aparência, mais clube do que time, mais vibração do que delírio, mais vigor do que agressão.
Ser Vasco é ousar, insistir, renovar-se, trabalhar para construir a vitória não como forma de superioridade, mas de aperfeiçoamento da vida e do esporte. É gol, é gala, é garbo de uniforme original, cruz no peito, sonho n’alma e amor no coração.
Ser Vasco é emoção recompensada porque vitória bem planejada, é lance, é lança, liberdade, impulso e convicção.
Ser Vasco é sentir o gosto da felicidade, da vitória e do grito maiúsculo de gol. É ter sabedoria e prudência, unidas na tática certeira ou na organização eficaz. É viver a emoção de lembrar nomes, lendas, heróis e legendários craques, troféus, títulos, retratos, faixas, taças, copas e vitórias imortais.
Ser Vasco é ter idênticos motivos para cultuar o passado tanto quanto crer no futuro.
Ser Vasco, enfim, é saborear com humildade o orgulho sadio da vitória merecida, do entusiasmo com motivo e da grandeza como destino“.

ARTHUR DA TÁVOLA

quinta-feira, 17 de março de 2011

INDIVIDUALISMO CONTEMPORÂNEO


É impossível discorrer sobre o individualismo contemporâneo sem citar o filósofo e sociólogo francês Gilles Lipovetsky. Afinal em sua obra são desveladas as novas atitudes surgidas nos países desenvolvidos a partir dos anos 60/70 do século passado, caracterizadas principalmente por um novo tipo de individualismo: o individualismo pós-moderno ou narcísico, que trouxe com ele uma transformação no comportamento do indivíduo ante a sociedade, rompendo com o individualismo moderno e, até certo ponto, romântico de Durkhein.
Tal transformação, porém, não é discreta e sim difusa. Ela não se realiza da mesma forma e ao mesmo tempo em todas as sociedades.
Enquanto nos países desenvolvidos, Lipovetsky já menciona, a partir dos anos 90 a chegada da hipermodernidade, trazendo consigo o hipernarcisismo, no Brasil, por exemplo, observamos apenas a partir da década de 80 a transformação para a pós modernidade, o advento do individualismo narcísico, talvez pela própria transição de um regime militar autoritário para a democracia.


A TRANSIÇÃO PARA O INDIVIDUALISMO NARCÍSICO.

“Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não...
...Vem, vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”

“Há quanto tempo vinha me procurando
Quanto tempo faz, nem me lembro mais,
Sempre correndo atrás de mim feito um louco
Querendo sair desse imenso sufoco.
Eu era tudo que eu podia querer
Era tão simples e eu custei a aprender,
Daqui pra frente nova vida terei,
Sempre a meu lado mais feliz eu serei.
Eu me amo, eu me amo,
Não posso mais viver sem mim”

Tentaremos fazer a análise das características do individualismo narcísico utilizando, às vezes, como recurso ilustrativo, fragmentos de letras de músicas elaboradas neste período no Brasil, e, como exemplo inicial, podemos observar nos fragmentos acima, a transição entre o individualismo moderno e o pós-moderno.
Enquanto o primeiro fragmento, de Geraldo Vandré, escrito no final da década de 60, enfoca um individualismo repleto de ideologia libertária, convocando à luta, à solidariedade em busca de direitos subjetivos; o segundo, cantado pela banda Ultraje a Rigor, no início dos anos 80 demonstra claramente a chegada do individualismo puro, da individualização das condições de vida, do culto de si e do bem-estar privado. Evidencia o fechamento em si mesmo,a apatia e conseqüente despolitização: o fim da esperança revolucionária e da contestação estudantil, a relegação da sociedade e do outro a um segundo plano. Segundo Lipovetsky, “só a esfera privada parece sair vitoriosa desta vaga de apatia; zelar pela própria saúde, preservar a sua situação material, perder os complexos, esperar que cheguem as férias”, viver sem ideal. Enfim, amar a si próprio acima de todas as coisas, e de todas as pessoas.

“A minha vida, eu preciso mudar todo dia...
...Os meus sonhos, eu procuro acordar e perseguir meus sonhos...
...Por isso hoje estou tão triste,
porque querer está tão longe de poder...”
(Ira!)

Viver no presente e somente no presente. Este é o sentido da vida deste novo indivíduo, em que predomina a perda do sentido de continuidade histórica: a ruptura com as tradições, renegando do passado, e a ausência de filhos, evidenciando a falta de preocupação com o futuro. Muitos narcisos utilizam a frase “carpe diem” como grande “ideal” a ser vivenciado.


A GERAÇÃO DOS ZUMBIS

“Eu vou, eu vou,
Eu vou virar zumbi”
(Neusinha Brizola)

“Minha casa é uma nave e eu navego só;
Sem contatos com viv’alma
No silêncio frio extremo...
...me sinto sempre mais distante...
...fechado nesta nave errante...”
(Guilherme Arantes)

A transformação em zumbis significa, antes de mais nada, a dessubstancialização do eu. Segundo Lipovetsky, “Narciso já não está imobilizado diante de sua imagem fixa, já nem sequer há imagem, nada para além da busca interminável de Si, um processo de desestabilização ou flutuação psi na esteira da flutuação monetária ou da opinião pública”. Isso acontece, principalmente em virtude do fechamento em si mesmo. A sociedade passou a consumir consciência, os cursos de filosofia para iniciantes, ioga, tai chi, psicanálise, entre outros são cada vez mais procurados pelos novos narcisos, que trabalham incessantemente na libertação do eu.
Principalmente nos paises mais desenvolvidos observa-se uma emancipação cada vez mais precoce. Os filhos se libertam dos pais, se distanciam dos amigos de infância, passam a viver “sozinhos” em sua nave e iniciam seu solitário navegar em busca do seu eu. Se sentem cada vez mais distantes de todos fechados na sua nave errante, em frente à tela do computador ou da televisão.
Em busca desta individualização, caminham juntos mas separados. Ser zumbi não significa estar sozinho: os zumbis andam em grupos, mas solitários. Ser zumbi não significa a ausência de comunicação, mas da presença de seu novo tipo, a virtual: os zumbis não falam, se comunicam através do pensamento, é a tecnologia wireless “aproximando” os novos narcisos-zumbis.


A DITADURA DA MÍDIA

“A televisão me deixou burro
Muito burro demais
E agora vivo dentro desta jaula junto com os animais...
...Ô Cride,fala pra mãe
Que tudo o que a antena captar meu coração captura...”
(Titãs)

“Eu vivia esperando a vida aparecer no Jornal Nacional
Olhava o zoom do vídeo e esperava o suicídio de algum boçal...
Eu ligo a tv, desligo a tv e ligo pra você...”
(Engenheiros do Hawai)

O individualismo pós moderno teve nos meios de comunicação de massa um poderoso “aliado” na sua formação. Diferentemente do cinema, que tem a sua luz projetada na tela, a televisão e o computador projetam sua luz diretamente nos olhos do indivíduo, atingindo e bombardeando o seu “eu” mais oculto, com sentimentos e informações, consumismos e modismos. Em outras obras suas, Lipovetsky escreveu sobre a influência da moda na formação do individualismo pós-moderno. Todavia os meios de comunicação parecem hoje ir além da moda: influenciam costumes e comportamentos, modificam leis, elegem presidentes e inserem no mundo dos neonarcisos, em seus apartamentos,quitinetes ou flats, uma falsa sensação de companhia.
Eles chegam em casa e ligam a televisão nos talk-shows, novelas e programas copiados essencialmente de países desenvolvidos, assimilam cada vez mais a cultura do império e a cultura do descartável.

“...A melhor banda dos últimos anos da última semana,
O melhor clipe brasileiro de música americana...
...Um idiota em inglês é bem melhor do que eu e vocês...”
(Titãs)

Aquele artista que fazia sucesso e vendia milhões de discos no ano anterior, no ano seguinte já é considerado “trash” ou caiu no total esquecimento. O celular que era o mais moderno e que ainda nem terminamos de pagar, já está obsoleto. O Baião-de-dois é substituído pelo hambúrguer, de preparo muito mais rápido, além de dispensar pratos e talheres. A nossa própria língua está sendo inundada por neologismos e estrangeirismos. Enfim, a mídia é, mais do que qualquer soberano, o grande poder da atualidade.


EM BUSCA DO CORPO PERFEITO

“...Não demora muito agora,
Toda de bundinha de fora,
top-less na areia, virando sereia...”
(Marina Lima)

“...Tu me apresenta essa mulher, meu irmão,te dava até um doce
sem roupa ela é demais, por isso mesmo eu creio em Deus...”
(Charlie Brown Jr.)


“Menino do Rio, calor que provoca arrepio
Dragão tatuado no braço
Calção corpo aberto no espaço”
(Caetano Veloso)

Diante do fechamento do indivíduo em si mesmo, o corpo foi elevado à categoria de verdadeiro objeto de culto. Vivemos uma fase de alto investimento no corpo: proliferação de academias de ginástica, clínicas de estética, personal trainings;avanço das técnicas de cirurgia plástica, lipoaspiração, lipoescultura, bioplastia. O corpo pode ser moldado de acordo com a necessidade do indivíduo, que hoje em dia é totalmente artificial a começar pelas mulheres, que já esqueceram a cor e a textura natural de seus cabelos e pele, a cor real de seus olhos, o tamanho original dos seus seios e quadris. Os homens, por sua vez, não ficam para trás, em face da nova onda “metrossexual”.
Além da parte externa, o novo narciso também cuida da parte interna e até mesmo do corpo psicológico, pois não se sabe mais as suas fronteiras. O medo da morte e do envelhecimento reflete o desinteresse nas gerações futuras e a falta de transcendência, a ausência de ideais.


RELAÇÕES DESTRUTIVAS E ASSOCIAIS

“...Já sei o que fazer pra ganhar muita grana:
Vou mudar meu nome para Herberth Vianna...”
(Plebe Rude)

“...Mamãe eu volto pra ilha
nem que seja montado na onça...”
(Chico César)

“...Eu sou teimoso, eu vou comprar dois automóveis:
Um pra mim, outro pra ti.
Vou comprar mais dois imóveis:
Um pra mim, outro pra ti.
Vou jogar toda a esperança numa conta de poupança
Pra você gostar de mim...”
(vital Farias)

Complexa e curiosa é a mudança no estilo das relações humanas no mundo narcisista. Com o a psicologização do ser, elas se tornaram fratricidas, destrutivas e associais. A fraternidade passa a ser seletiva, e, por isso mesmo excludente, já que determinado grupo se une em torno de características comuns e rejeita todo o que dele não faz parte.
No mundo do trabalho, então, a exacerbada competição passa a ser um jogo que se joga só, utilizando contra os adversários a astúcia, os truques e a dissimulação.
Tal dissimulação também é evidenciada na ocultação dos sentimentos: nada de excessos ou de tensões, somente a discrição e a indiferença dignificam. A riqueza deixou de ser um signo de progresso individual e social e passou a ter somente um sentido psicológico: o de suscitar admiração ou inveja.

“...Já beijei um, já beijei dois, já beijei três,
Hoje eu já beijei e vou beijar mais uma vez...”
(Banda beijo)

“...E mesmo que eu não estivesse ali
Amor coisa qualquer que eu nunca entendi,
Mas esse talvez dure até amanhã...”
(Lena Garcia)

“...,Eu e ela,
Ela e a outra,
As duas juntas e eu aqui com água na boca
Mulheres são de Vênus, os homens são de Marte,
O mundo é tão pequeno e ainda levaram a minha parte.
As duas juntas e eu aqui sozinho,
As duas juntas e eu olhando escondido...”
(Tihuana)

Nesta guerra de todos contra todos, as relações públicas e privadas tornaram-se relações de dominação. O neo-feminismo praticamente destruiu as relações entre homens e mulheres, confundiu igualdade de direitos com igualdade em essência.
Em conseqüência disto, as relações afetivas contemporâneas passaram a ter, principalmente, as seguintes características: o hedonismo e a transexualização.
O hedonismo, que se traduz no “ficar” quantizado e sem nenhum compromisso com o futuro, e na pouca importância do outro na relação : o que vale é o prazer individual (significando até mesmo que a “obrigação” de dar prazer ao parceiro busca acariciar e satisfazer o seu próprio ego) e imediato. A fugacidade das relações é uma constante e traz em seu âmago a perda de significado das ternas demonstrações de afeto como o beijo e as carícias íntimas.
A transexualização, causada principalmente pela feroz guerra dos sexos estimulada pelo neofeminismo, significa principalmente o apagamento da divisão tradicional masculino-feminino e da sua codificação. O homem foi feminilizado, despido da sua virilidade histórica; por outro lado, a mulher foi masculinizada, despida de sua fragilidade e da sua mística. De acordo com Lipovetsky, a sedução feminina, misteriosa ou histérica, dá lugar a uma auto-sedução narcísica que homens e mulheres partilham por igual, sedução fundamentalmente transsexual, à margem das distribuições e atribuições de sexo.
As relações afetivas e sexuais, portanto, não mais significam relações heterossexuais. Pelo contrário, existe no mundo contemporâneo uma pressão cada vez mais forte da sociedade no sentido da legalização da união civil entre homossexuais, bem como o reconhecimento de outros tipos de organização e estruturação familiar.

O DESESPERO DE NARCISO

“...Solidão a dois de dia,
Faz calor, depois faz frio...
...Eu penso em suicídio,
Mas no fundo eu nem ligo...
...Eu queria ter uma bomba,
Um flit paralisante qualquer,
Pra poder te negar bem no último instante.”
(Cazuza)

“...Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente.
Tentei chorar mas não consegui.”
(Legião Urbana)

O desprendimento emocional aspirado pelos indivíduos nesta era de individualismo narcísico, que, entre outras coisas significa a fuga do sentimento, a relação livre, o “cool sex”, a fuga de qualquer tipo de paixão e a indiferença total causa um mal estar difuso e invasor, um sentimento de vazio interior e de absurdo da vida, uma incapacidade de sentir as coisas e os seres que se traduz, principalmente, em novos tipos de patologias, como a síndrome do pânico e os TOC (Transtornos Obsessivos-Compulsivos), características da pós-modernidade.♣

quarta-feira, 16 de março de 2011

BALADA DO AMOR ALQUÍMICO


Oxigênio é vida e morte.
Oxigênio do amor:
O outro transbordando-nos de vida...
Preenchendo os espaços,
Sopro de paz...

Oxigênio é vida e morte.
Oxigênio-indiferença:
A oxidação do amor...
Inevitável corrosão dos dias...
Inevitável corrosão dos años...

Amor é oxigênio:
Dá-nos a vida,
Causa-nos a morte,
Oxigena e oxida
Inevitavelmente
A nossa tênue existência.

terça-feira, 15 de março de 2011

FREI BETTO ENTREVISTA O DIABO

Foi publicada em "O Imparcial" não sei quando e achei interessante, pois também duvido desta "concorrência" sobre nossas almas. Deliciem-se:

FREI BETTO ENTREVISTA O DIABO


Frei Betto — Você existe mesmo?
Diabo — Ora, não lembra o que disse o cardeal Ratzinger? “Para os fiéis cristãos, o Diabo é uma presença misteriosa, mas real, pessoal e não-simbólica.”
Frei Betto — Talvez concorde com o último predicado.
Diabo — Por quê?
Frei Betto — Porque símbolo, reza a etimologia da palavra grega, é o que une,agrega. O antônimo é diabolos, o que desagrega. Desculpe a minha falta de fé.
Diabo — Em mim ou no cardeal?
Frei Betto — Nos dois. Na ausência de uma boa dúvida cartesiana, fico com Spinoza: se você, contra a vontade de Deus, induz os seres humanos a praticar o mal, e ainda nos condena à danação eterna, que diabos de deus é esse que o deixa impune e ainda permite que sejamos punidos por você? Afinal, você é inimigo ou cúmplice de Deus?
Diabo — Não esqueça, fui criado por Deus.
Frei Betto — Não como demônio, mas como anjo.
Diabo — Sim. agora sou um anjo decaído, pois fiz com que a primeira criatura, Adão, se voltasse contra o Criador. Adão tornou-se cativo de meu reino. Jesus teve que morrer na cruz para resgatá-lo.
Frei Betto — Não me venha com esse papo de Mel Gibson. Você bem sabe que Deus tinha o poder de arrancar Adão. do reino do mal sem precisar mandar o seu Filho e deixar que sofresse tanto. Qual pai se compraz com o sofrimento do filho? Jesus veio nos ensinar o amor como prática de justiça e foi vitima da injustiça estrutural que predominava em sua época, como ainda hoje.
Diabo — Deus tentou me enganar. Manteve em segredo o nascimen¬to de Jesus. Mas, à medida que o Filho crescia, fui percebendo quão perfeito ele era. Quis, portanto, tê-lo ao meu lado.
Frei Betto — Você tentou seduzi-lo três vezes e quebrou a cara. Prometeu-lhe os reinos deste mundo, mas ele preferiu o de Deus; mandou que transformasse pedras em pães, mas ele não acedeu à primazia dos sentidos; quis vê-lo voar como os anjos, atirando-se do pináculo do Templo, mas ele optou pelas vias ordinárias, e não pelos efeitos extra¬ordinários.
Diabo — Admito que não consegui dobrá-lo aos meus caprichos. Mas desencadeei as forças do mal contra ele, até que morresse na cruz.
Frei Betto — Mas ele ressuscitou, venceu o mal.
Diabo — Sim, Deus me enganou.
Frei Betto — Como assim?
Diabo — O homem Jesus era a isca na qual Deus escondeu o anzol da divindade de Cristo. Ao perceber isso, era tarde demais.
Frei Betto — Por que Deus, em vez de sacrificar seu Filho na cruz, não matou você?
Diabo — Isso é um segredo entre mim e Deus.
Frei Betto — Não posso acreditar que Deus comparta qualquer coisa com você, como as almas de seus filhos e filhas, e nem mesmo a exis¬tência. Ou acha que vou acreditar que a falta de Adão tenha sido mais grave que o assassinato do Filho do Homem na cruz?
Diabo — Eu sou a contradição de Deus.
Frei Betto — Você já leu Robinson Crusoé? Lembra da “catequese” que ele tentou impingir em Sexta-Feira? Este indagou: “Se você diz que Deus é tão forte, tão grande, ele não é mais forte e mais poderoso que o Diabo?” Crusoé confirmou. Então, Sexta-Feira concluiu: “Por que Deus não mata o Diabo para ele não fazer mais maldade?” Embaraçado, Crusoé fingiu que não ouviu.
Diabo — O que você responderia?
Frei Betto — Diria que Deus não pode matar o que não criou. Você é uma criação das religiões arcaicas que dividiam o mundo entre as forças do bem e do mal, o que a Bíblia rejeita, embora alguns políticos atuais queiram justificar seus ímpetos bélicos e suas ambições imperialistas na base desse dualismo.
Diabo — Mas eu figuro na Bíblia !
Frei Betto — O que não significa que de fato exista, assim como Adão e Eva também estão citados lá e nunca existiram. Adão significa “terra” e a Eva, “vida”. A Bíblia, como um livro em linguagem popular, antropomorfiza conceitos abstratos. Ou você acha que Elias subiu ao céu num car¬ro de fogo e que existe o dragão citado no Apocalipse?
Diabo — Então você não crê na minha existência? Como explica tanto mal no mundo?
Frei Betto — Você mente tanto e tão bem que até faz a gente tender a acreditar que existe. O mal é uma decorrência da liberdade humana. Eterni¬zar o castigo é eternizar o mal. Somos chamados a responder livremente ao amor de Deus. E onde há amor há liberdade, inclusive de se fechar a ele.
Diabo — E no inferno, você acredita?
Frei Betto — Fico com Dostoievski, “o inferno é a incapacidade de não poder mais amar”. Borges frisa que “é uma irreligiosidade” crer no inferno.
Diabo — Mas eu sou real!
Frei Betto — Deus não tem concorrente. Nós inventamos você para nos eximir de nossas responsabilidades e culpas, por nem sempre corresponder ao que Deus espera de nós.

Frei Betto é frade dominicano, intelectual, simpatizante da Teologia da Libertação, 49 livros publicados, ex-assessor especial do Governo Lula.

segunda-feira, 14 de março de 2011

DE VOLTA AO BLOG COM UM POEMA:

SNAKE

Theodore Roethke

I saw a young snake glide
Out of the mottled shade
And hang, limp on a stone:
A thin mouth, and a tongue
Stayed, in the still air.

It turned; it drew away;
Its shadow bent in half;
It quickened and was gone

I felt my slow blood warm.
I longed to be that thing.
The pure, sensuous form.

And I may be, some time.


THEODORE ROETHKE

O poeta Theodore Roethke (25 de Maio de 1908 - 1 de Agosto de 1963) é natural do Michigan, Estados Unidos da América. Em vida publicou títulos como Open House (1941), The Lost Son and Other Poems (1948), Praise to the End! (1951), The Waking (1953, Prémio Pulitzer para Poesia), Words For The Wind (1958), I Am! Says The Lamb (1961), Party at the Zoo (1963). Postumamente saiu The Far Field (1964, National Book Award) e outras colectâneas.


A sua poesia é comummente caracterizada pelo seu ritmo próprio e pelo imaginário natural, baseado nos elementos da natureza, aliado à sensualidade, beleza e mistério. Tem um cariz confessional ("Os meus segredos gritam forte./ Não tenho necessidade de língua./ O meu coração oferece hospitalidade,/ As minhas portas se abrem livremente." - do Poema "Casa Aberta”) e tais marcas aparecem ora num tom coloquial, ganhando uma outra vida ou vitalidade, ora num tom mais "surrealístico". Em algumas criações o poeta invoca a vida dos insectos e das plantas, e este factor é semi-autobiográfico, devido ao facto de a sua família possuir um negócio de flores.


Nos seus poemas, parece-me que os elementos naturais se apresentam como marcas da memória, como que se apropriando da sua mesquinhez e substituindo-a pela leveza de um tempo intemporal e por uma escolha ou opção, ainda que incompreendidas pelo sujeito poético. ("O elemento do ar era incontido./ O ímpeto do vento rasgou as folhas ternas / Projectando-as em confusão para a terra. / Esperamos as primeiras gotas de chuva nos aleros." - do Poema "Interlúdio").


Esta espera aqui aparece, semelhantemente a outros poemas do autor, a redigir os seus próprios propósitos, e é espera enquanto fuga ao caos da cidade, enquanto pequena imprevisibilidade da natureza, redefinição do tamanho e peso das coisas.


Por vezes os seus poemas fazem-me lembrar os do poeta brasileiro Manoel de Barros (veja-se, a título de exemplo, este "O Mundo não foi feito em Alfabeto"); pela visão conscientemente reduzida, por olhar o que está pertíssimo dos olhos, pelo dinamizar de realidades que, pelo alheamento frequente do comum dos mortais, parecem estáticas, ou quase isso. Veja-se, a este respeito, o poema O Mínimo (The Minimal): "Estudo as vidas sobre uma folha: os pequenos / Dorminhocos, paralisados estorvando-se em dimensão fria, / Escaravelhos em cavernas, salamandras, peixes surdos, / Piolhos colados a longas e fracas ervas subterrâneas, / Contorcionistas em pântanos, / E répteis bacterianos / Retorcendo-se entre feridas / Como jovens enguias em tanques, / As suas bocas descoloradas beijando suturas quentes, / limpando e acariciando, / deslizando e cicatrizando."


Theodore Roethke era claramente um poeta à frente do seu tempo, e isto sem negar que tenha passado por uma fase mais lírico-clássica, de poemas com uma forma mais rígida e com recurso à rima. Um dia terá dito que seria o mais velho jovem poeta da América. Foi fortemente influenciado por poetas como Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau, Walt Whitman, William Blake, William Wordsworth, W.B. Yeats, e Dylan Thomas. Relacionou-se com poetas como W.H. Auden, Louise Bogan, Stanley Kunitz e William Carlos Williams. Durante a sua fase adulta teve problemas de instabilidade mental e de alcoolismo, reflectidos nos seus poemas, e não raras vezes de forma cómica, especialmente em temas como o amor erótico ou as relações familiares.

O simbolismo da sua poesia está ligado a cinco vectores que nela aparecem muito distintamente: nascimento, crescimento, decaimento, morte e renascimento.


POR SYLVIA BEIRUTE