terça-feira, 15 de março de 2011

FREI BETTO ENTREVISTA O DIABO

Foi publicada em "O Imparcial" não sei quando e achei interessante, pois também duvido desta "concorrência" sobre nossas almas. Deliciem-se:

FREI BETTO ENTREVISTA O DIABO


Frei Betto — Você existe mesmo?
Diabo — Ora, não lembra o que disse o cardeal Ratzinger? “Para os fiéis cristãos, o Diabo é uma presença misteriosa, mas real, pessoal e não-simbólica.”
Frei Betto — Talvez concorde com o último predicado.
Diabo — Por quê?
Frei Betto — Porque símbolo, reza a etimologia da palavra grega, é o que une,agrega. O antônimo é diabolos, o que desagrega. Desculpe a minha falta de fé.
Diabo — Em mim ou no cardeal?
Frei Betto — Nos dois. Na ausência de uma boa dúvida cartesiana, fico com Spinoza: se você, contra a vontade de Deus, induz os seres humanos a praticar o mal, e ainda nos condena à danação eterna, que diabos de deus é esse que o deixa impune e ainda permite que sejamos punidos por você? Afinal, você é inimigo ou cúmplice de Deus?
Diabo — Não esqueça, fui criado por Deus.
Frei Betto — Não como demônio, mas como anjo.
Diabo — Sim. agora sou um anjo decaído, pois fiz com que a primeira criatura, Adão, se voltasse contra o Criador. Adão tornou-se cativo de meu reino. Jesus teve que morrer na cruz para resgatá-lo.
Frei Betto — Não me venha com esse papo de Mel Gibson. Você bem sabe que Deus tinha o poder de arrancar Adão. do reino do mal sem precisar mandar o seu Filho e deixar que sofresse tanto. Qual pai se compraz com o sofrimento do filho? Jesus veio nos ensinar o amor como prática de justiça e foi vitima da injustiça estrutural que predominava em sua época, como ainda hoje.
Diabo — Deus tentou me enganar. Manteve em segredo o nascimen¬to de Jesus. Mas, à medida que o Filho crescia, fui percebendo quão perfeito ele era. Quis, portanto, tê-lo ao meu lado.
Frei Betto — Você tentou seduzi-lo três vezes e quebrou a cara. Prometeu-lhe os reinos deste mundo, mas ele preferiu o de Deus; mandou que transformasse pedras em pães, mas ele não acedeu à primazia dos sentidos; quis vê-lo voar como os anjos, atirando-se do pináculo do Templo, mas ele optou pelas vias ordinárias, e não pelos efeitos extra¬ordinários.
Diabo — Admito que não consegui dobrá-lo aos meus caprichos. Mas desencadeei as forças do mal contra ele, até que morresse na cruz.
Frei Betto — Mas ele ressuscitou, venceu o mal.
Diabo — Sim, Deus me enganou.
Frei Betto — Como assim?
Diabo — O homem Jesus era a isca na qual Deus escondeu o anzol da divindade de Cristo. Ao perceber isso, era tarde demais.
Frei Betto — Por que Deus, em vez de sacrificar seu Filho na cruz, não matou você?
Diabo — Isso é um segredo entre mim e Deus.
Frei Betto — Não posso acreditar que Deus comparta qualquer coisa com você, como as almas de seus filhos e filhas, e nem mesmo a exis¬tência. Ou acha que vou acreditar que a falta de Adão tenha sido mais grave que o assassinato do Filho do Homem na cruz?
Diabo — Eu sou a contradição de Deus.
Frei Betto — Você já leu Robinson Crusoé? Lembra da “catequese” que ele tentou impingir em Sexta-Feira? Este indagou: “Se você diz que Deus é tão forte, tão grande, ele não é mais forte e mais poderoso que o Diabo?” Crusoé confirmou. Então, Sexta-Feira concluiu: “Por que Deus não mata o Diabo para ele não fazer mais maldade?” Embaraçado, Crusoé fingiu que não ouviu.
Diabo — O que você responderia?
Frei Betto — Diria que Deus não pode matar o que não criou. Você é uma criação das religiões arcaicas que dividiam o mundo entre as forças do bem e do mal, o que a Bíblia rejeita, embora alguns políticos atuais queiram justificar seus ímpetos bélicos e suas ambições imperialistas na base desse dualismo.
Diabo — Mas eu figuro na Bíblia !
Frei Betto — O que não significa que de fato exista, assim como Adão e Eva também estão citados lá e nunca existiram. Adão significa “terra” e a Eva, “vida”. A Bíblia, como um livro em linguagem popular, antropomorfiza conceitos abstratos. Ou você acha que Elias subiu ao céu num car¬ro de fogo e que existe o dragão citado no Apocalipse?
Diabo — Então você não crê na minha existência? Como explica tanto mal no mundo?
Frei Betto — Você mente tanto e tão bem que até faz a gente tender a acreditar que existe. O mal é uma decorrência da liberdade humana. Eterni¬zar o castigo é eternizar o mal. Somos chamados a responder livremente ao amor de Deus. E onde há amor há liberdade, inclusive de se fechar a ele.
Diabo — E no inferno, você acredita?
Frei Betto — Fico com Dostoievski, “o inferno é a incapacidade de não poder mais amar”. Borges frisa que “é uma irreligiosidade” crer no inferno.
Diabo — Mas eu sou real!
Frei Betto — Deus não tem concorrente. Nós inventamos você para nos eximir de nossas responsabilidades e culpas, por nem sempre corresponder ao que Deus espera de nós.

Frei Betto é frade dominicano, intelectual, simpatizante da Teologia da Libertação, 49 livros publicados, ex-assessor especial do Governo Lula.

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