quinta-feira, 17 de março de 2011

INDIVIDUALISMO CONTEMPORÂNEO


É impossível discorrer sobre o individualismo contemporâneo sem citar o filósofo e sociólogo francês Gilles Lipovetsky. Afinal em sua obra são desveladas as novas atitudes surgidas nos países desenvolvidos a partir dos anos 60/70 do século passado, caracterizadas principalmente por um novo tipo de individualismo: o individualismo pós-moderno ou narcísico, que trouxe com ele uma transformação no comportamento do indivíduo ante a sociedade, rompendo com o individualismo moderno e, até certo ponto, romântico de Durkhein.
Tal transformação, porém, não é discreta e sim difusa. Ela não se realiza da mesma forma e ao mesmo tempo em todas as sociedades.
Enquanto nos países desenvolvidos, Lipovetsky já menciona, a partir dos anos 90 a chegada da hipermodernidade, trazendo consigo o hipernarcisismo, no Brasil, por exemplo, observamos apenas a partir da década de 80 a transformação para a pós modernidade, o advento do individualismo narcísico, talvez pela própria transição de um regime militar autoritário para a democracia.


A TRANSIÇÃO PARA O INDIVIDUALISMO NARCÍSICO.

“Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não...
...Vem, vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”

“Há quanto tempo vinha me procurando
Quanto tempo faz, nem me lembro mais,
Sempre correndo atrás de mim feito um louco
Querendo sair desse imenso sufoco.
Eu era tudo que eu podia querer
Era tão simples e eu custei a aprender,
Daqui pra frente nova vida terei,
Sempre a meu lado mais feliz eu serei.
Eu me amo, eu me amo,
Não posso mais viver sem mim”

Tentaremos fazer a análise das características do individualismo narcísico utilizando, às vezes, como recurso ilustrativo, fragmentos de letras de músicas elaboradas neste período no Brasil, e, como exemplo inicial, podemos observar nos fragmentos acima, a transição entre o individualismo moderno e o pós-moderno.
Enquanto o primeiro fragmento, de Geraldo Vandré, escrito no final da década de 60, enfoca um individualismo repleto de ideologia libertária, convocando à luta, à solidariedade em busca de direitos subjetivos; o segundo, cantado pela banda Ultraje a Rigor, no início dos anos 80 demonstra claramente a chegada do individualismo puro, da individualização das condições de vida, do culto de si e do bem-estar privado. Evidencia o fechamento em si mesmo,a apatia e conseqüente despolitização: o fim da esperança revolucionária e da contestação estudantil, a relegação da sociedade e do outro a um segundo plano. Segundo Lipovetsky, “só a esfera privada parece sair vitoriosa desta vaga de apatia; zelar pela própria saúde, preservar a sua situação material, perder os complexos, esperar que cheguem as férias”, viver sem ideal. Enfim, amar a si próprio acima de todas as coisas, e de todas as pessoas.

“A minha vida, eu preciso mudar todo dia...
...Os meus sonhos, eu procuro acordar e perseguir meus sonhos...
...Por isso hoje estou tão triste,
porque querer está tão longe de poder...”
(Ira!)

Viver no presente e somente no presente. Este é o sentido da vida deste novo indivíduo, em que predomina a perda do sentido de continuidade histórica: a ruptura com as tradições, renegando do passado, e a ausência de filhos, evidenciando a falta de preocupação com o futuro. Muitos narcisos utilizam a frase “carpe diem” como grande “ideal” a ser vivenciado.


A GERAÇÃO DOS ZUMBIS

“Eu vou, eu vou,
Eu vou virar zumbi”
(Neusinha Brizola)

“Minha casa é uma nave e eu navego só;
Sem contatos com viv’alma
No silêncio frio extremo...
...me sinto sempre mais distante...
...fechado nesta nave errante...”
(Guilherme Arantes)

A transformação em zumbis significa, antes de mais nada, a dessubstancialização do eu. Segundo Lipovetsky, “Narciso já não está imobilizado diante de sua imagem fixa, já nem sequer há imagem, nada para além da busca interminável de Si, um processo de desestabilização ou flutuação psi na esteira da flutuação monetária ou da opinião pública”. Isso acontece, principalmente em virtude do fechamento em si mesmo. A sociedade passou a consumir consciência, os cursos de filosofia para iniciantes, ioga, tai chi, psicanálise, entre outros são cada vez mais procurados pelos novos narcisos, que trabalham incessantemente na libertação do eu.
Principalmente nos paises mais desenvolvidos observa-se uma emancipação cada vez mais precoce. Os filhos se libertam dos pais, se distanciam dos amigos de infância, passam a viver “sozinhos” em sua nave e iniciam seu solitário navegar em busca do seu eu. Se sentem cada vez mais distantes de todos fechados na sua nave errante, em frente à tela do computador ou da televisão.
Em busca desta individualização, caminham juntos mas separados. Ser zumbi não significa estar sozinho: os zumbis andam em grupos, mas solitários. Ser zumbi não significa a ausência de comunicação, mas da presença de seu novo tipo, a virtual: os zumbis não falam, se comunicam através do pensamento, é a tecnologia wireless “aproximando” os novos narcisos-zumbis.


A DITADURA DA MÍDIA

“A televisão me deixou burro
Muito burro demais
E agora vivo dentro desta jaula junto com os animais...
...Ô Cride,fala pra mãe
Que tudo o que a antena captar meu coração captura...”
(Titãs)

“Eu vivia esperando a vida aparecer no Jornal Nacional
Olhava o zoom do vídeo e esperava o suicídio de algum boçal...
Eu ligo a tv, desligo a tv e ligo pra você...”
(Engenheiros do Hawai)

O individualismo pós moderno teve nos meios de comunicação de massa um poderoso “aliado” na sua formação. Diferentemente do cinema, que tem a sua luz projetada na tela, a televisão e o computador projetam sua luz diretamente nos olhos do indivíduo, atingindo e bombardeando o seu “eu” mais oculto, com sentimentos e informações, consumismos e modismos. Em outras obras suas, Lipovetsky escreveu sobre a influência da moda na formação do individualismo pós-moderno. Todavia os meios de comunicação parecem hoje ir além da moda: influenciam costumes e comportamentos, modificam leis, elegem presidentes e inserem no mundo dos neonarcisos, em seus apartamentos,quitinetes ou flats, uma falsa sensação de companhia.
Eles chegam em casa e ligam a televisão nos talk-shows, novelas e programas copiados essencialmente de países desenvolvidos, assimilam cada vez mais a cultura do império e a cultura do descartável.

“...A melhor banda dos últimos anos da última semana,
O melhor clipe brasileiro de música americana...
...Um idiota em inglês é bem melhor do que eu e vocês...”
(Titãs)

Aquele artista que fazia sucesso e vendia milhões de discos no ano anterior, no ano seguinte já é considerado “trash” ou caiu no total esquecimento. O celular que era o mais moderno e que ainda nem terminamos de pagar, já está obsoleto. O Baião-de-dois é substituído pelo hambúrguer, de preparo muito mais rápido, além de dispensar pratos e talheres. A nossa própria língua está sendo inundada por neologismos e estrangeirismos. Enfim, a mídia é, mais do que qualquer soberano, o grande poder da atualidade.


EM BUSCA DO CORPO PERFEITO

“...Não demora muito agora,
Toda de bundinha de fora,
top-less na areia, virando sereia...”
(Marina Lima)

“...Tu me apresenta essa mulher, meu irmão,te dava até um doce
sem roupa ela é demais, por isso mesmo eu creio em Deus...”
(Charlie Brown Jr.)


“Menino do Rio, calor que provoca arrepio
Dragão tatuado no braço
Calção corpo aberto no espaço”
(Caetano Veloso)

Diante do fechamento do indivíduo em si mesmo, o corpo foi elevado à categoria de verdadeiro objeto de culto. Vivemos uma fase de alto investimento no corpo: proliferação de academias de ginástica, clínicas de estética, personal trainings;avanço das técnicas de cirurgia plástica, lipoaspiração, lipoescultura, bioplastia. O corpo pode ser moldado de acordo com a necessidade do indivíduo, que hoje em dia é totalmente artificial a começar pelas mulheres, que já esqueceram a cor e a textura natural de seus cabelos e pele, a cor real de seus olhos, o tamanho original dos seus seios e quadris. Os homens, por sua vez, não ficam para trás, em face da nova onda “metrossexual”.
Além da parte externa, o novo narciso também cuida da parte interna e até mesmo do corpo psicológico, pois não se sabe mais as suas fronteiras. O medo da morte e do envelhecimento reflete o desinteresse nas gerações futuras e a falta de transcendência, a ausência de ideais.


RELAÇÕES DESTRUTIVAS E ASSOCIAIS

“...Já sei o que fazer pra ganhar muita grana:
Vou mudar meu nome para Herberth Vianna...”
(Plebe Rude)

“...Mamãe eu volto pra ilha
nem que seja montado na onça...”
(Chico César)

“...Eu sou teimoso, eu vou comprar dois automóveis:
Um pra mim, outro pra ti.
Vou comprar mais dois imóveis:
Um pra mim, outro pra ti.
Vou jogar toda a esperança numa conta de poupança
Pra você gostar de mim...”
(vital Farias)

Complexa e curiosa é a mudança no estilo das relações humanas no mundo narcisista. Com o a psicologização do ser, elas se tornaram fratricidas, destrutivas e associais. A fraternidade passa a ser seletiva, e, por isso mesmo excludente, já que determinado grupo se une em torno de características comuns e rejeita todo o que dele não faz parte.
No mundo do trabalho, então, a exacerbada competição passa a ser um jogo que se joga só, utilizando contra os adversários a astúcia, os truques e a dissimulação.
Tal dissimulação também é evidenciada na ocultação dos sentimentos: nada de excessos ou de tensões, somente a discrição e a indiferença dignificam. A riqueza deixou de ser um signo de progresso individual e social e passou a ter somente um sentido psicológico: o de suscitar admiração ou inveja.

“...Já beijei um, já beijei dois, já beijei três,
Hoje eu já beijei e vou beijar mais uma vez...”
(Banda beijo)

“...E mesmo que eu não estivesse ali
Amor coisa qualquer que eu nunca entendi,
Mas esse talvez dure até amanhã...”
(Lena Garcia)

“...,Eu e ela,
Ela e a outra,
As duas juntas e eu aqui com água na boca
Mulheres são de Vênus, os homens são de Marte,
O mundo é tão pequeno e ainda levaram a minha parte.
As duas juntas e eu aqui sozinho,
As duas juntas e eu olhando escondido...”
(Tihuana)

Nesta guerra de todos contra todos, as relações públicas e privadas tornaram-se relações de dominação. O neo-feminismo praticamente destruiu as relações entre homens e mulheres, confundiu igualdade de direitos com igualdade em essência.
Em conseqüência disto, as relações afetivas contemporâneas passaram a ter, principalmente, as seguintes características: o hedonismo e a transexualização.
O hedonismo, que se traduz no “ficar” quantizado e sem nenhum compromisso com o futuro, e na pouca importância do outro na relação : o que vale é o prazer individual (significando até mesmo que a “obrigação” de dar prazer ao parceiro busca acariciar e satisfazer o seu próprio ego) e imediato. A fugacidade das relações é uma constante e traz em seu âmago a perda de significado das ternas demonstrações de afeto como o beijo e as carícias íntimas.
A transexualização, causada principalmente pela feroz guerra dos sexos estimulada pelo neofeminismo, significa principalmente o apagamento da divisão tradicional masculino-feminino e da sua codificação. O homem foi feminilizado, despido da sua virilidade histórica; por outro lado, a mulher foi masculinizada, despida de sua fragilidade e da sua mística. De acordo com Lipovetsky, a sedução feminina, misteriosa ou histérica, dá lugar a uma auto-sedução narcísica que homens e mulheres partilham por igual, sedução fundamentalmente transsexual, à margem das distribuições e atribuições de sexo.
As relações afetivas e sexuais, portanto, não mais significam relações heterossexuais. Pelo contrário, existe no mundo contemporâneo uma pressão cada vez mais forte da sociedade no sentido da legalização da união civil entre homossexuais, bem como o reconhecimento de outros tipos de organização e estruturação familiar.

O DESESPERO DE NARCISO

“...Solidão a dois de dia,
Faz calor, depois faz frio...
...Eu penso em suicídio,
Mas no fundo eu nem ligo...
...Eu queria ter uma bomba,
Um flit paralisante qualquer,
Pra poder te negar bem no último instante.”
(Cazuza)

“...Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente.
Tentei chorar mas não consegui.”
(Legião Urbana)

O desprendimento emocional aspirado pelos indivíduos nesta era de individualismo narcísico, que, entre outras coisas significa a fuga do sentimento, a relação livre, o “cool sex”, a fuga de qualquer tipo de paixão e a indiferença total causa um mal estar difuso e invasor, um sentimento de vazio interior e de absurdo da vida, uma incapacidade de sentir as coisas e os seres que se traduz, principalmente, em novos tipos de patologias, como a síndrome do pânico e os TOC (Transtornos Obsessivos-Compulsivos), características da pós-modernidade.♣

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